Mediterrâneo

UM MAR QUE VIVE.
Yo que en la piel tengo el sabor amargo del llanto eterno
Que han vertido en ti cien pueblos, de Algeciras a Estambul
Para que pintes de azul sus largas noches de invierno
A fuerza de desventuras tu alma es profunda y oscura
(Mediterraneo, Joan Manuel Serrat)
A música do espanhol Joan Manuel Serrat retrata muito bem a importância do Mediterrâneo, não só para Espanha, como para os outros 27 países que o cercam: um Mar que na verdade é vivo, quase um personagem que alterou o passado, desenha o presente e avista um futuro cercado de história. Como diria Fernand Braudel:
Nada é mais evidente que o Mediterrâneo do oceanógrafo, do geólogo ou mesmo o geógrafo: esses são domínios reconhecidos, etiquetados e balizados. Mas e o Mediterrâneo da história?
Em seu livro clássico sobre o Mar Mediterrâneo, o autor coloca o gigante mar afro-euro-asiático, como sendo muito mais que um mar, se tornando um verdadeiro agente histórico, cultural e econômico. Para o historiador, tal condição geográfica do mar atuou desde a antiguidade até a atualidade como sendo um protagonista, ou seja, em uma longa duração o Mediterrâneo se tornou um agente causador das ações e decisões das diversas civilizações que por ele navegaram ou o margeiam. Assim, a agricultura ao entrono do mar: de zona seca, predominantemente de planície, ajudaram a desenvolver diversos gêneros alimentares como o pão, o azeite e outros temperos, o que modificou a cultura de tal região.
Essa relação foi chamada por Braudel de transumância, ou seja, de uma migração regular de camponeses e rebanhos de animais em determinada época do ano, e que se torna um hábito repetido várias vezes entre as regiões de montanha e planície. Assim, as civilizações do Mediterrâneo desenvolveram um modo de convivência com o seu ambiente que moldaram suas ações, e que ainda de certa forma, acontece até hoje, mesmo que, de maneira adaptada.
Outra característica que o autor comenta é o modo de navegação. Na antiguidade - o que nos interessa aqui - a navegação das civilizações do período era de cabotagem, ou seja, desenvolvida na costa para evitar a imensidão do mar. Isso acontecia, pois, mesmo que fenícios, gregos, egípcios e romanos tivessem um desenvolvimento grande em navegação ainda não possuíam uma tecnologia que pudesse de fato enfrentar o Mediterrâneo. Dessa forma, quem tivesse o pleno controle do mar, indiretamente, possuía um engrandecimento econômico e de poder, podendo taxar preços ou até mesmo, controlar a inda e vinda de estrangeiros.
Portanto, se formos analisar por período histórico, cada uma das civilizações do mundo antigo teve um contato grande com o Mediterrâneo:
- Grécia: principalmente Atenas, desenvolveu no Mediterrâneo e no Egeu seu berço econômico e de influência no mundo das Cidades Estado. No mundo grego, as Guerras Médicas tiveram no Mediterrâneo um espaço de ação entre os persas e gregos, principalmente, na segunda fase do conflito;
- Roma: talvez Roma tenha sido a primeira grande civilização a ter posse do Mediterrâneo. Tal poderio ficou evidenciado nas Guerras Púnicas, onde, enfrentando o que restava da Fenícia, consegue ter o controle dos portos de Cartago conseguindo assim o domínio territorial nos três continentes: África, Ásia e Europa por completo. Tanto que mesmo dividido, a parte Oriental de Roma (Constantinopla) e a Ocidental (Gênova e Veneza) continuaram sendo soberanas na prática marítima;
- Fenícia: foram os fenícios a primeira civilização que fez do Mediterrâneo de fato seu fator econômico e político. Por meio da talassocracia, ou seja, governo marítimo, tal civilização conseguiu atingir parte das atuais ilhas gregas e o norte da África, na região de Cartago. Mas, era em Trípoli que as coisas possuíam ligação com a sua parte terrestre. Assim, foram os fenícios os primeiros donos a enfrentar o Mediterrâneo.
Podemos ter em mente que tal condição mediterrânea ocasionou um desenvolvimento da agricultura e de cidades nas zonas costeiras, principalmente, na Fenícia, Grécia e Egito, e em certa parte, Roma.
O MEDITERRÂNEO E O SISTEMA ESCRAVISTA.
O mundo greco-romano sempre se centrou na lógica da cidade, até por que, tal pensamento ou tipo de ação, entre centro e periferia, era um modo de evidenciar certo status dentro da ideia de urbe. Um exemplo de como se observar isso, está na valorização da arquitetura como um meio de grandiosidade, seja de um templo em uma Cidade Estado ou de um legado de um Imperador. Ao mesmo tempo em que há uma valorização de uma urbe existe um déficit grande de produção econômica e de riqueza dentro destes espaços, isso dentro de uma economia ineficiente, aonde, o lucro vinha do campo para a cidade, ou seja, o lucro vinha da periferia para o centro. Assim o mundo greco-romano é acima de tudo, um mundo agrário em sua essência, com grandes proprietários de terra, mas ao mesmo tempo, uma "elite" que não vive na periferia.
Assim chegamos a um ponto importante: nesse mundo voltado para a urbe, para os grandes centros, o Mar Mediterrâneo se tornou um meio rápido e eficiente de todo o escoamento agrário de tais regiões, principalmente na dimensão macro que era Roma, ou seja, era mais econômico ir pelo mar do que pela terra. Um exemplo é o Egito, produtor de trigo que em sua maioria, abastecia o mundo romano, sendo tal transporte feito em sua grande importância pelo Mediterrâneo. Além do Egito, tomar a cidade de Cartago nas Guerras Púnicas, foi um meio de alcançar a região da Gália e Hispânica de forma mais eficiente o que ampliou a solidificação de Roma no mundo Antigo, ou seja, tanto Roma como a Grécia foram civilizações que fizeram do Mediterrâneo um grande aliado, e tal solidificação só foi possível graças a realidade da escravidão.
A escravidão foi o que operou o mundo greco-romano, no sentido que era um "combustível" social de produção, uma vez que não só era algo jurídico, ou uma dívida, ou execução penal, bem como, tal sistema escravista operou com maior peso na realidade agrária, e com aspecto de status na região da urbe. Cada realidade operou de uma forma específica, porém, ambas giravam na ideia de ausência de liberdade, além disso, tanto na Grécia como em Roma, a escravidão saiu de uma realidade de recurso auxiliar a condição de trabalho, para ser um modo de produção sistêmico, como aponta Perry Anderson:
Ao mesmo tempo, enquanto o uso de escravidão se tornava generalizado, sua natureza, de maneira correspondente, foi se tornando absoluta: já não era uma forma relativa de servidão entre muitas outras, posta em um continuum gradual, mas sim uma condição polarizada de completa perda de liberdade, em oposição a uma nova liberdade sem impedimentos.
Isso é importante, pois, no mundo afro-asiático, mais exatamente na Mesopotâmia e no Egito, operava uma ideia de servidão, ou seja, não existia uma lógica de propriedade da escravidão, já que não existia uma liberdade plena, onde, todos eram propriedade do soberano. No mundo greco-romano, mais principalmente em Roma, a escravidão se torna um meio eficaz de produção e de economia, por isso mesmo, a ideia de um sistema escravista. Dessa maneira a escravidão unia o mundo agrário - do trabalho, da força, de algo impuro - com a urbe - espaço da organização, do ócio, das artes. É sempre bom ter em mente que o trabalho no mundo antigo não era algo que existia, pelo contrário, o ócio era algo valorizado em que a comunhão entre homem, natureza e os Deuses era o que se buscava, até por isso mesmo a frase de Platão "os Estados estão destinados a conter grande quantidade de escravos" fazia sentido. Na Grécia a cada 3 gregos haviam dois escravos, e no mundo romano quase 30% da população no período republicano era escrava.
MUNDO GREGO.
Dimensionar a escravidão na Grécia é algo complicado, porém, em cidades como Corinto ou Atenas, a escravidão assumiu uma realidade rígida, em que ser escravo era assumir uma natureza do "trabalho", como uma condição de inferioridade, em um perca do continuum de liberdade. Assim com o passar do tempo, ter escravos era algo necessário para viver no ócio, na realidade do pensamento e das artes, isso por que, viver no campo também era algo ruim, porém, ganhar com o campo era um status. Assim, a escravidão fez existir um excedente populacional, que ao mesmo tempo, não existia, ou seja, é a perca constante da liberdade do outro (estrangeiro ou quem tem débitos) que gerou o lucro econômico grego, principalmente o ateniense, que estava voltado ao campo e no comércio marítimo. Mas mesmo assim, toda essa questão estava organizada dentro de um âmbito local de cada pólis. Um único adendo fica com Esparta, onde, a lógica do trabalho era de semi-servidão, uma vez que, os próprios espartanos meio que "escravizaram" os hilotas, antigos habitantes da região e os periecos, camponeses.
MUNDO ROMANO
Diferente da Grécia, onde mesmo sendo uma força atuante não era predominante, em Roma a escravidão era o que movia toda a lógica de sociedade, principalmente no período imperial. A lógica romana via o escravo como sendo uma mercadoria, ou seja, além de ser inferiorizado na sua ideia de liberdade existia uma sistematização de compra e venda do escravo. Na lógica romana, principalmente na cidade, quanto mais escravos uma família possuía, mais poder social e econômico ela demonstrava no coletivo. Outra diferença era que as constantes guerras de expansão, fizeram crescer de forma vertiginosa o número de escravos, o que indiretamente, impulsionou o poderio econômico romano.
Tal realidade muda com a Lei Poetélia Papira que estabelece uma nova realidade entre a ideia de público e privado, onde, a escravidão por dívida era extinta ascendendo pouco a pouco, a mudança social das pessoas. Aliado a isso, ter um escravo era um bem pessoal de cada família. Outra diferença dentro desta realidade se encontra na condição de ser escravo, enquanto no mundo grego você nascia ou se tornava escravo para o resto da vida, em Roma não era bem assim: você podia comprar sua liberdade, ou trabalhar para ser concedidas a liberdade, ou estar dentro do testamento de seu "dono", que após a sua morte tal escravo estava liberto. Porém, o sistema escravista em Roma se deteriora com a crise de escravos, que ou se libertavam ou não mais existiam; embora o colonato (serviço pago pelo Império para você trabalhar e receber) existisse, não funcionou já que a lógica de trabalho não era algo comum. Assim podemos dizer que a aversão ao trabalho foi um dos motivos da queda de Roma.
***
Podemos concluir que a lógica do Mar Mediterrâneo fez com que o mundo antigo, mas principalmente Grécia e Roma, se estruturassem em uma forma de trabalho que se baseava na supressão de liberdade do outro, assim, a escravidão se tornou uma muleta econômica na construção de um mundo cercado de certos privilégios de determinados grupos políticos e econômicos do período. E nesse meio todo, o Mediterrâneo foi testemunha ocular do nascer, do apogeu e do fim de tais civilizações!
Agora vamos praticar